por Juliana Bentes
Vivente alhures dos (con)fins da floresta amazônica, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas
Um platô na foz do Tapajós, com terra escura e grandes praias desertas, abriga um das primeiras ruínas deixadas pelo imperialismo moderno: uma plantation de seringueiras geneticamente modificadas e as estruturas que a acompanharam: uma pequena vila em arquitetura modernista norte-americana. Localizada no oeste do estado do Pará, Belterra foi a segunda tentativa de implantar o monocultivo de seringueiras na Amazônia por Henry Ford, milionário norte-americano, proprietário de uma das maiores empresas de fabricação de carros até hoje, a Companhia Ford. Atualmente, Belterra preserva suas raízes coloniais ligadas às monoculturas, tornando-se um dos epicentros do plantio de soja no Baixo Amazonas. Ergueu-se através do desmatamento para servir de estrutura às plantações de borracha, e atualmente é através do desmatamento que submerge no mar de soja que inunda as paisagens amazônicas, que em seu curso de águas verdes envenenadas pelo material tóxico “anti-pragas”, que transporta a epidemia de “fim do mundo” da modernização, do “agro é tudo”, responsável pelo genocídio das florestas e da população humana e não-humana que a compunham.
Belterra, enquanto um município independente, é a própria ruína deixada pela tentativa frustrada de implementação da agro-silvicultura moderna em solos amazônicos. E é em seus rastros mais significativos - os edifícios em arquitetura norte-americana deixados pelo passado, que hoje servem para abrigar os órgãos municipais - que (re)alimentam as novas-velhas dinâmicas distorcidas de modernização da agricultura. É aqui neste platô que passado e presente se encontram; a seringa e a soja como atualizações das concepções distorcidas das relações ecológicas que ruma ao fim do mundo. Cresci nessas ruínas e costumo dizer que eu e a soja crescemos juntas, temos praticamente a mesma idade nessas terras. A monocultura, esse tempo inteiro, escreveu a história da minha vida e de minha família, e hoje sou eu quem posso escrever a história de vida dessa monocultura. Para isso, optei por usar o meu olhar através da fotoetnografia, que representa um meio-tempo entre esse passado-do-futuro e futuro-do-passado, cujo elo se encontra na distorção.
A distorção do pensamento moderno é o que permaneceu desde a instalação das seringueiras plantadas até a expansão das outras monoculturas - a da soja, das galinhas ou das vacas. Tal distorção também toma forma nos variados projetos desenvolvimentistas implantados em toda a Amazônia em suas inúmeras particularidades, arrastando nossas diversas subjetividades para o grande mar moderno do “mono”, relativo ao único, ao universal, à própria linguagem do monopólio: monocromático, monoteísta e portanto, binário. O binarismo que separa a cultura (o humano) da natureza (o não-humano), (re)produzindo uma suposta hierarquia na “ordem” do cosmos que justifica a exploração da “cultura” (o domesticado) sobre a “natureza” (o selvagem). Como a linguagem é irônica, ela também nos diz assim: a supremacia da monocultura sobre as florestas - dos - selvagens. Nesse sentido, a distorção monocultural se propaga na Amazônia como uma epidemia, derrubando as florestas, destruindo redes ecológicas e sociais, propagando doenças contaminosas, matando corpos indígenas e não-indígenas; aniquilando subjetividades e visões de mundo.
No percurso desta fotoetnografia, dialogando com a proposta da deturpação, resolvi mostrar meu olhar diante da ruína em que eu cresci: a “bela-terra” dos sonhos fracassados norte-americanos. Seguindo os passos da antropóloga Anna Tsing, propus-me a contar a história deste lugar através das multiespécies enquanto agentes nas decisões políticas humanas, sendo elas tão responsáveis pelas transformações de um lugar quanto a humanidade. Para tanto, escolhi como protagonista desta narrativa, o Microcyclus ulei, um fungo que se alimenta especificamente dos folíolos novos da Hevea brasiliensis, a principal seringueira que chora as seivas altamente produtivas da borracha natural, produto de grande interesse para os magnatas do automobilismo no Norte Global.
A gênesis de Belterra já é consequência de uma série de acontecimentos cujo a Hevea brasiliensis teve grande protagonismo que, a grosso modo, se resume ao deslocamento de sementes de seringueiras para os centros de melhoramento genético de espécimes botânicos destinadas ao monocultivo em colônias britânicas na Ásia. Na Ásia se ergueram as primeiras monoculturas de seringueiras do mundo a partir da modificação e clonagem de sementes de alto valor produtivo. As monoculturas têm a capacidade de produzir muito mais do mesmo em um período muito mais curto, além do mais, a disposição de suas engenharias facilita o processo do extrativismo da seiva, o látex. Em pouco tempo, o Reino Unido deteve o monopólio mundial da borracha, submetendo outros impérios aos seus próprios preços e devolvendo a Amazônia às margens do mundo.
Neste paradigma, um milionário norte-americano, que aqui servirá de metonímia para o Humano ou a modernidade, no desvario de produzir a própria matéria-prima dos pneus dos automóveis de sua empresa, a Companhia Ford, decidiu obter através da compra, seu próprio pedaço de Amazônia, onde viria a implantar o projeto de extrativismo da seringa: plantations de seringueira. Foi convencido a colocá-la no mesmo lugar de onde agentes do Reino Unido tinham traficado as sementes de alto valor produtivo: a foz do Tapajós, num distrito cujo nome expressa sua megalomania, a “Fordlândia”. Esse Humano não contou, todavia, que existia uma relação social muito antiga entre seringueiras do gênero Hevea brasilienses e um fungo predador de suas folhas jovens, o Microcyclus ulei. Tal relacionamento entre planta e fungo inviabilizou os planos modernos, desmascarando a grande distorção que essa linha de pensamento produz e obrigando-o a deslocar suas monoculturas para outro lugar: Belterra, o lugar onde cresceu minha bisavó, minha avó, minha mãe e também eu, e agora onde este ensaio cresceu, junto às fotografias e as palavras que aqui vos apresento.
Que escrita potente e envolvente, muito bom te ler e alcançar essa clareza no pensamento em relação ao desenrolar dessa história
texto lindo sobre uma história horrorosa
Incrível, parece ficção cientifica. Parabéns pelo trabalho.