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Foto do escritorJuliana Bentes

A epidemia de plantations em Belterra - passado e presente em distorções

Atualizado: 4 de mar. de 2022

por Juliana Bentes

Vivente alhures dos (con)fins da floresta amazônica, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas

 

Um platô na foz do Tapajós, com terra escura e grandes praias desertas, abriga um das primeiras ruínas deixadas pelo imperialismo moderno: uma plantation de seringueiras geneticamente modificadas e as estruturas que a acompanharam: uma pequena vila em arquitetura modernista norte-americana. Localizada no oeste do estado do Pará, Belterra foi a segunda tentativa de implantar o monocultivo de seringueiras na Amazônia por Henry Ford, milionário norte-americano, proprietário de uma das maiores empresas de fabricação de carros até hoje, a Companhia Ford. Atualmente, Belterra preserva suas raízes coloniais ligadas às monoculturas, tornando-se um dos epicentros do plantio de soja no Baixo Amazonas. Ergueu-se através do desmatamento para servir de estrutura às plantações de borracha, e atualmente é através do desmatamento que submerge no mar de soja que inunda as paisagens amazônicas, que em seu curso de águas verdes envenenadas pelo material tóxico “anti-pragas”, que transporta a epidemia de “fim do mundo” da modernização, do “agro é tudo”, responsável pelo genocídio das florestas e da população humana e não-humana que a compunham.


Belterra, enquanto um município independente, é a própria ruína deixada pela tentativa frustrada de implementação da agro-silvicultura moderna em solos amazônicos. E é em seus rastros mais significativos - os edifícios em arquitetura norte-americana deixados pelo passado, que hoje servem para abrigar os órgãos municipais - que (re)alimentam as novas-velhas dinâmicas distorcidas de modernização da agricultura. É aqui neste platô que passado e presente se encontram; a seringa e a soja como atualizações das concepções distorcidas das relações ecológicas que ruma ao fim do mundo. Cresci nessas ruínas e costumo dizer que eu e a soja crescemos juntas, temos praticamente a mesma idade nessas terras. A monocultura, esse tempo inteiro, escreveu a história da minha vida e de minha família, e hoje sou eu quem posso escrever a história de vida dessa monocultura. Para isso, optei por usar o meu olhar através da fotoetnografia, que representa um meio-tempo entre esse passado-do-futuro e futuro-do-passado, cujo elo se encontra na distorção.


A distorção do pensamento moderno é o que permaneceu desde a instalação das seringueiras plantadas até a expansão das outras monoculturas - a da soja, das galinhas ou das vacas. Tal distorção também toma forma nos variados projetos desenvolvimentistas implantados em toda a Amazônia em suas inúmeras particularidades, arrastando nossas diversas subjetividades para o grande mar moderno do “mono”, relativo ao único, ao universal, à própria linguagem do monopólio: monocromático, monoteísta e portanto, binário. O binarismo que separa a cultura (o humano) da natureza (o não-humano), (re)produzindo uma suposta hierarquia na “ordem” do cosmos que justifica a exploração da “cultura” (o domesticado) sobre a “natureza” (o selvagem). Como a linguagem é irônica, ela também nos diz assim: a supremacia da monocultura sobre as florestas - dos - selvagens. Nesse sentido, a distorção monocultural se propaga na Amazônia como uma epidemia, derrubando as florestas, destruindo redes ecológicas e sociais, propagando doenças contaminosas, matando corpos indígenas e não-indígenas; aniquilando subjetividades e visões de mundo.


No percurso desta fotoetnografia, dialogando com a proposta da deturpação, resolvi mostrar meu olhar diante da ruína em que eu cresci: a “bela-terra” dos sonhos fracassados norte-americanos. Seguindo os passos da antropóloga Anna Tsing, propus-me a contar a história deste lugar através das multiespécies enquanto agentes nas decisões políticas humanas, sendo elas tão responsáveis pelas transformações de um lugar quanto a humanidade. Para tanto, escolhi como protagonista desta narrativa, o Microcyclus ulei, um fungo que se alimenta especificamente dos folíolos novos da Hevea brasiliensis, a principal seringueira que chora as seivas altamente produtivas da borracha natural, produto de grande interesse para os magnatas do automobilismo no Norte Global.


A gênesis de Belterra já é consequência de uma série de acontecimentos cujo a Hevea brasiliensis teve grande protagonismo que, a grosso modo, se resume ao deslocamento de sementes de seringueiras para os centros de melhoramento genético de espécimes botânicos destinadas ao monocultivo em colônias britânicas na Ásia. Na Ásia se ergueram as primeiras monoculturas de seringueiras do mundo a partir da modificação e clonagem de sementes de alto valor produtivo. As monoculturas têm a capacidade de produzir muito mais do mesmo em um período muito mais curto, além do mais, a disposição de suas engenharias facilita o processo do extrativismo da seiva, o látex. Em pouco tempo, o Reino Unido deteve o monopólio mundial da borracha, submetendo outros impérios aos seus próprios preços e devolvendo a Amazônia às margens do mundo.


Neste paradigma, um milionário norte-americano, que aqui servirá de metonímia para o Humano ou a modernidade, no desvario de produzir a própria matéria-prima dos pneus dos automóveis de sua empresa, a Companhia Ford, decidiu obter através da compra, seu próprio pedaço de Amazônia, onde viria a implantar o projeto de extrativismo da seringa: plantations de seringueira. Foi convencido a colocá-la no mesmo lugar de onde agentes do Reino Unido tinham traficado as sementes de alto valor produtivo: a foz do Tapajós, num distrito cujo nome expressa sua megalomania, a “Fordlândia”. Esse Humano não contou, todavia, que existia uma relação social muito antiga entre seringueiras do gênero Hevea brasilienses e um fungo predador de suas folhas jovens, o Microcyclus ulei. Tal relacionamento entre planta e fungo inviabilizou os planos modernos, desmascarando a grande distorção que essa linha de pensamento produz e obrigando-o a deslocar suas monoculturas para outro lugar: Belterra, o lugar onde cresceu minha bisavó, minha avó, minha mãe e também eu, e agora onde este ensaio cresceu, junto às fotografias e as palavras que aqui vos apresento.



Imagem 1: Atualmente as ruínas das plantations de Henry Ford são chamadas de Bosque das Seringueiras, preservadas enquanto testemunhas vivas da tentativa de modernização da Amazônia. Estão localizadas no centro da cidade, entre a Vila Mensalista e a Vila Americana, as primeiras ruas da cidade. Belterra, Pará, 2021.


Imagem 2: Distorção V: Arquitetura da replicação. As sementes usadas para as plantações de seringueiras em Belterra eram clones de algumas das sementes das árvores de “alto valor produtivo” da Ásia. A opção pelos clones se deu devido exclusivamente pela tragédia de Fordlândia, no qual o fungo Microcyclus ulei dizimou todos os seringais. Esta distorção parte da questão: por que importar sementes de uma árvore amazônica de outro lugar do mundo para a própria Amazônia? Por que subestimar o aviso desses fungos? Nos valemos do conceito de plantation de Anna Tsing (2016), onde implica necessariamente “simplificações ecológicas nas quais os seres vivos são transformados em recursos - ativos futuros -, removendo-os de seus mundos de vida. As plantations são máquinas de replicação, ecologias evocadas para a produção do mesmo”. As monoculturas são uma distorção das relações ecológicas, que obrigou, por exemplo, Henry Ford a importar clone de sementes supostamente imunes aos fungos.


Imagem 3: prédio hoje pertencente à prefeitura do município em arquitetura norte-americana, atualmente servindo para alocar as secretarias. Belterra, Pará, 2021.



Imagem 4: Distorção IV: onde o futuro do passado e o passado do futuro se encontram. Entre as árvores, monumentos em arquiteturas norte-americana que hoje pertencem à prefeitura, alocando suas diversas câmaras e secretarias. Foram edifícios construídos para os funcionários estadunidenses que vieram junto com a monocultura para a região. Agora é onde sentam os grandes sojeiros em cargos governamentais devido as influências políticas que exercem na região. Uma ruína que hoje serve de abrigo para um mesmo tipo de movimento de distorções das relações ecológicas e legitimando a expansão das monoculturas de soja, galinhas e vacas no território do município.


Imagem 5: Copa das seringueiras em Belterra, Pará, 2021.


Imagem 6: Distorção III: O fungo. O principal inimigo dos planos de Henry Ford foi o fungo Microcyclus ulei. O fungo que infecta apenas seringueiras. Numa paisagem heterogênea, o poder de ação e deslocamento dele é extremamente dificultado pelas outras espécies vegetais. No entanto, na floresta homogênea, o Microcyclus alcança seu potencial máximo de contágio: ele atravessa de uma árvore para outra através das folhas das copas das árvores muito aproximadas. Ele costuma parasitar as folhas mais novas, impedindo novas folhagens que levam as seringueiras à morte. Em pouco tempo, o fungo matou quase toda a plantação moderna de Henry Ford. Esta plantation é uma distorção do funcionamento das relações ecológicas típicas da agricultura moderna.


Imagem 7: Casa abandonada na Vila Mensalista em Belterra, Pará, 2021.


Imagem 8: Distorção II: Mundos deslocados A história de Fordlândia e Belterra é com certeza uma história de distorções. E talvez uma das mais significativas seja a de deslocamentos de mundos. Seja literalmente: quando pensamos nos movimentos da seringa para Ásia - a história das sementes traficadas e posteriormente replicadas e trazidas de volta para cá em projetos de agricultura moderna -; dos humanos envolvidos quando pensamos naqueles que migraram por causa dessa planta, deslocando-se de seus mundos para construí-los na Amazônia, lugar tão rico de mundos plurais. E seja simbolicamente: quando pensamos o modernismo como uma epidemia que propaga simplificações ecológicas, impondo seu mundo homogêneo, monocromático, dicotômico e “monocultural” na emaranhada cadeia de relações multiespécies amazônicas, seja no passado das seringueiras plantadas, seja no presente do latifúndio da soja e seus insumos tóxicos.


Imagem 9: Distorção I: Livre para o Progresso. Quando encaro essas ruínas de perto me vêm à cabeça a imagem de um nó emaranhado em tantos outros nós. Um nó é um fio torcido e distorcido, emaranhado. Quando reflito o porquê de estar onde estou, em frente a uma árvore. Uma seringueira. Que também é um clone... que também foi importada da Ásia… e na Ásia estão seringueiras… importadas da Amazônia… sementes roubadas… Por que isso não vingou? Foi um fungo típico da Amazônia, assim como eu. Os esporos desse fungo eram passados de uma folha para outra, facilitados pela disposição das árvores na engenharia das florestas de monocultivo. Penso também sobre a facilidade da compra de dois municípios inteiros, a justificativa de progresso. A modernização se inscreve como uma farsa de progresso: foi a promessa feita pelos colonizadores para a implantação de inúmeros projetos desenvolvimentistas que dizimaram corpos e subjetividades humanas e não-humanas em várias partes do território amazônico. Só se for o progresso das epidemias de pobreza, de patógenos e de destruição de viver-no-mundo. Epidemias de garimpo, de soja, de milho, de vacas e galinhas. Atualmente, o lema da cidade de Belterra é “Livre para o Progresso”, para manter seu velho e contínuo futuro colonial. Pelo que eu sei da soja, o progresso que testemunhei ao vê-la crescer junto comigo, foi apenas o do avançar do fim do mundo: contaminação por doenças advindas de agrotóxicos, desmatamento das florestas que eram abrigos de viventes em relações simbióticas complexas e necessárias a manutenção do clima, da vida e de um futuro plural. Negou às pessoas daqui a liberdade de escolher em que mundo elas gostariam de viver, pois tudo que nos trouxe foi pobreza. Veneno e pobreza. E o que a monocultura não sabe sobre mim ainda, foi que recusei o “progresso” que ela me relegou. Hoje escrevo desassossegada de um lugar onde por ela, eu jamais deveria estar...

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3 Comments


karinapimentac
Dec 10, 2021

Que escrita potente e envolvente, muito bom te ler e alcançar essa clareza no pensamento em relação ao desenrolar dessa história

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Kevin Archanjo
Kevin Archanjo
Dec 09, 2021

texto lindo sobre uma história horrorosa

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Leonardo Morais
Leonardo Morais
Dec 09, 2021

Incrível, parece ficção cientifica. Parabéns pelo trabalho.

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