por Victória Ester Tavares da Costa [1]
Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará
Belém é a cidade em que nasci e onde teci boa parte dos meus laços e experiências de vida. Apesar de morar no início de Ananindeua, município que integra a Região Metropolitana de Belém, por cerca de 20 anos vivi neste fluxo em que quase todas as atividades de lazer, família ou estudos se davam na capital paraense. Assim, falar de práticas da cidade ao modo de Michel De Certeau (1994) sem as deambulações, caminhadas atentas ou mesmo o perder-se benjaminiano (1994) – tão comum a mim – foi uma especificidade (e dificuldade) de boa parte do início da pesquisa de tese que estou desenvolvendo no campo da Antropologia Urbana.
A pandemia da Covid-19 trouxe o isolamento social e, para as pessoas que, assim como eu, tiveram a possibilidade de cumpri-lo, certamente viveram, em alguma medida, certas distorções da imagem sobre a cidade e sobre o tempo. Por ser o locus de todas as pesquisas que realizei anteriormente, diversas vezes me vi tentando rememorar a Belém pela qual costumava caminhar. Esta tentativa de retomada das imagens da cidade se voltou ao campo da prática com maior intensidade no início das pesquisas de campo, que saíram do virtual – esfera na qual esteve por alguns meses – para finalmente chegar às ruas. Deste modo, após este período e estas tentativas de jogos da memória (ECKERT; ROCHA, 2000) feitos ainda em casa, junto de táticas elaboradas antecipadamente para a entrada em campo (CERTEAU, 1994), passei a acompanhar interlocutores/as com os quais estou trabalhando diretamente, bem como suas redes, que estendem-se pela cidade, desdobrando-se em trocas e mobilidades que se amplificam a partir de suas ações específicas em seus bairros.
É interessante, porém, antes de seguirmos, localizar esta pesquisa: enquanto cidade amazônica, Belém do Pará foi fundada às margens do Rio Guamá e da Baía do Guajará. A proximidade com as águas deriva em relações de diversas ordens, dependendo dos grupos e dos locais por onde elas correm. Nos bairros de fronteira simbólica, como venho chamando os bairros periferizados de Belém (por fatores que tocam questões sociais, econômicas, culturais e raciais, especialmente), elas fazem parte das sociabilidades (SIMMEL, 1983) e dinâmicas cotidianas. As atividades do dia-a-dia e as trocas com e no espaço aproximam alguns destes bairros e, por isto, os chamo de fronteiras. Estão em constante fluxo, são um entre-lugar, ao mesmo tempo em que são espaço de criação que, na pesquisa, relaciono diretamente ao imaginário sobre e na Amazônia. |
Assim, quando iniciei as observações de campo, houve o primeiro impacto sobre os “cuidados” pandêmicos, já tão conhecidos e divulgados nesta época (segundo semestre de 2020). No entanto, ao adentrar os bairros que compõem a pesquisa, percebi, na prática, o que os jornais já mostravam: o isolamento social como privilégio de poucos. As ruas estavam tomadas por quem não pôde ficar em casa, que não teve opção diante da falta de recursos para manter uma casa, uma família. Por outro lado, a cooperação entre essas vizinhanças mostrou-se novamente como uma das mais marcantes características dos bairros de fronteira de Belém. Vizinhos que se tornam extensão da família, ajudam uns aos outros com frequência e, neste momento, também foram suporte, quando este não chegava por vias do poder público.
A professora Lília Melo, idealizadora do Cine Clube TF[2] e uma das interlocutoras desta pesquisa, mencionou o vídeo “#FestivalTeAquietaEmCasa” (abaixo), realizado por jovens que fazem parte deste coletivo artístico-cultural como forma de conscientização dos moradores do bairro da Terra Firme.
Além disso, ações para ajudar pessoas com o auxílio do governo ou mesmo iniciativas de limpeza e higiene foram idealizadas e colocadas em prática por coletivos independentes destes e nestes bairros, como o Cine Clube TF e o Telas em Movimento[3].
Com o passar dos meses, ao me aproximar destes grupos, passei a frequentar os eventos que promoviam/promovem, como mostras e oficinas. À medida em que ia entrando em cada nova rua, centro cultural ou programação que eram novos para mim, conhecia o bairro e (re)conhecia Belém. E a Belém que não é aquela do centro, a turística, é de ruas estreitas, dos bairros, das pequenas pontes. De estar nas ruas, não apenas enquanto caminho entre um ponto e outro, mas de um apropriar-se, de ocupar a rua, também de tê-la enquanto uma extensão de sua casa, indo ao encontro do dito por Roberto DaMatta (1997).
Programação “Cinema de Bairro”, realizada pela Negritar Produções e Gueto Hub (biblioteca e centro cultural localizado no Jurunas), que iniciou com um cortejo pelas ruas do bairro com crianças fantasiadas de personagens de filmes e desenhos que interagiam com moradores e passantes, terminando em uma exibição de filmes paraenses na Escola de Samba do Rancho.
Exibição do filme “Limoeiro”, produzido por jovens do bairro do Jurunas em oficina promovida pelo Telas em Movimento, com programação para os vizinhos no Centro Comunitário Limoeiro, dia 31 de março de 2022.
Essa apropriação do espaço público, inclusive, me parece um atributo importantíssimo dos bairros de fronteira simbólica. Suas memórias se constituem enquanto praticam a cidade como sua casa, sua morada e lugar de relações diversas: diversão, aprendizado, luta etc. Relacionar-se com e na rua, faz com que os laços e imagens criados ganhem intensidade e importância em percepções individuais, assim como nas coletivas. Coletividade esta que se faz presente na composição das ruas e no modo de ocupá-las, ainda que margeiem algum canal (de drenagem, igarapés), cumprimentam o vizinho ao sair para o trabalho, criam obras para uso coletivo, os festejos tornam-se comemorações partilhadas por vários. Por isto, acredito que o modo como habitantes de bairros de fronteira mantiveram a prática das ruas na pandemia também modificaram suas produções sobre e das paisagens (e, portanto, a cidade).
No segundo semestre de 2022, por conta da oportunidade de fazer um estágio doutoral em outra cidade, me propus algumas deambulações por Belém antes da minha ida, na tentativa de praticar espaços que me eram comuns antes da pandemia e, também, de memorizá-los de outras formas, com novo contexto. Foi assim que notei estabelecimentos que não mais existiam, outros novíssimos e recentes, prédios como o histórico Palacete Faciola que foi revitalizado e retomou atividades. O tempo pandêmico funcionou muito diferente para cada pessoa ou grupo.
O próprio Círio de Nossa Senhora de Nazaré – santa padroeira paraense da qual as relações e agenciamentos ultrapassam em muito o que se entende como catolicismo – cuja procissão havia sido oficialmente cancelada, ocupou as ruas de Belém em outubros consecutivos, guiada por fiéis que julgaram a fé maior que as limitações colocadas pela pandemia. O espaço citadino pandêmico também se configurou de diversas formas para cada um.
Memórias são criadas, apagadas, reinventadas. Estes anos pandêmicos (ainda não terminados) nos trouxeram a certeza de que o espaço e o tempo são elaborados e reelaborados à medida em que mantemos nossas dinâmicas e atividades, o que confere diferentes nuances ao espaço urbano, variadas imagens; quando se trata da cidade, as paisagens tomam pra si estas ações, fluxos e movimentos causados nelas e com elas.
Memórias da cidade nuançadas
pelas práticas que tecemos nela.
Belém mudou muito nestes tempos, de modo que talvez eu não a (re)conheça mais em algumas esquinas, alguns prédios quando retornar. Mas nunca a conheci ou conhecerei por inteiro. E é neste constante conhecer que faço (e desfaço e refaço) meus percursos acadêmicos em torno desta cidade, que nunca é a mesma, e que se (re)compõe à medida em que outras narrativas se desvelam no tempo.
[1] Bacharel em Comunicação Social, com ênfase em Publicidade e Propaganda (UNAMA), e em Cinema e Audiovisual (UFPA). Experiências no campo do audiovisual em edição, produção e direção de arte em videoclipes, curtas-metragens, documentário, videoinstalação e também em vídeos publicitários e institucionais. Doutoranda em Antropologia Social (PPGSA/UFPA) e realiza pesquisa sobre o audiovisual produzido em áreas de fronteira em Belém do Pará.
[2] Coletivo idealizado e coordenado pela professora de português Lília Melo em 2014, formado por jovens e alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Brigadeiro Fontenelle. O Cine Clube TF é dividido em Grupos de Trabalho (GTs), cada um deles responsável por uma expressão artística: Poame-se, direcionado ao escrever e recitar poemas; PeriferArt, voltado para as artes visuais; Perifa Incena, grupo de teatro; Perifsons, grupo de canto e de música; Cine Dance, voltado para danças; e o Petricor, que é o grupo responsável pelo registro e produção de fotos e vídeos.
[3] Telas em Movimento é um projeto que surgiu como um festival de cinema no ano de 2019, idealizado por Joyce Cursino (também idealizadora da Negritar Produções) e que reuniu vários coletivos e produtoras da região com o intuito de “democratizar o acesso ao cinema”, levando mostras e oficinas para bairros e comunidades de Belém (e, mais recentemente, vem se expandindo para outras cidades amazônicas).
Bibliografia
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